O atraso em Pacoti – que “fria” ...

 

 

 

A maioria das vezes em que o Big Brasa foi contratado para tocar no interior do estado, aos sábados, durante o período em que o conjunto participou do programa Show do Mercantil, nós tínhamos que fazer um bom planejamento para não perder tempo, e chegar ao destino antes da hora marcada, com tempo suficiente para instalar o instrumental e testá-lo, pelo menos. O conjunto tinha um “esquema” preparado para essas situações. 

 

Naquela noite o Big Brasa iria tocar em Pacoti, cidade serrana do interior do Ceará. À tarde o conjunto participou do programa Show do Mercantil e mais ou menos às 18:30h, um pouco antes de seu encerramento, conforme tínhamos acertado com a produção do programa, desmontamos nosso equipamento e os bigus levaram todo o material para os transportes. Enquanto isso, nós fizemos um rápido lanche no restaurante “Jerbô”, que ficava na esquina da Avenida Antônio Sales, pertinho da TV Ceará, e nos mandamos para Pacoti em dois carros. Eu dirigia a Kombi e o Fernando “Galba” a Rural. (Foto ao lado Adalberto e Severino). 

 

No percurso, tudo transcorria muito bem. O pessoal descansava um pouco, se preparando para mais uma noite de muito embalo. Acontece que em virtude do pouco conhecimento da estrada, noite muito escura e principalmente pela falta de sinalização, chegando à Serra de Guaramiranga, eu e o Galba nos perdemos, não encontrando a entrada para Pacoti. Ficamos rodando por algum tempo, mais perdidos do que cachorros em dia de festa. Na medida em que o tempo passava, nossa preocupação aumentava.  Por sorte, encontramos com um transeunte, que nos forneceu a informação necessária para que encontrássemos o caminho.

 

Quando finalmente chegamos à cidade, quase meia-noite ou um pouco mais que isso, o quadro era desolador. Muita gente na rua, rapazes e moças parcialmente desarrumados, conversando em grupos e muito desanimados pelo quase certo cancelamento da festa em razão da falta do conjunto. Um verdadeiro fracasso seria se realmente tivéssemos faltado.

 

Enfim paramos na porta do clube, sendo imediatamente cercados pelos contratantes e populares. Explicações sobre o atraso foram dadas e bem aceitas, tendo em vista que prometemos - e cumprimos - prorrogar a festa pelo tempo necessário para cobrir nosso atraso. Pudemos notar que rapidamente o pessoal se mobilizou, com o maior entusiasmo. E a festa foi realizada, dentro de um clima de muita animação. Naquela noite, tocamos até quase de manhã.

 

Durante o baile, em razão do intenso frio, tivemos problemas para manter a bateria afinada, visto que o couro dos tambores amolecia e ficava praticamente sem som. Interrompemos a festa, mais de uma vez, para levar os tambores da bateria, até perto do fogão do bar, a fim de que aquecessem novamente. Esse tipo de problema com os couros da bateria, algum tempo depois foi solucionado, com o surgimento das peles de “nylon”, que vieram para substituir o couro. Na hora do lanche, no intervalo, as situações quase rotineiras: quase não tinha nada reservado para o conjunto. Uma galinha praticamente congelada, pelo frio da serra, refrigerantes e nada mais. O pessoal responsável pelo bar, querendo faturar alto vendia tudo, sem a menor preocupação de reservar o lanche para o conjunto. Nessas horas, o que fazer? Assim mesmo a batalha continuava.

 

No decorrer da festa, um senhor me fez um pedido musical. Lembro que a música solicitada não constava do nosso repertório. Então, no intervalo, eu pessoalmente justifiquei o não atendimento do tal pedido. Na continuação do baile, entretanto,  lhe oferecemos uma seqüência de sambas, pela qual ficou muito satisfeito e agradecido pela atenção. Ficou me tratando, até o fim da festa por “educado”.

 

Com o baile terminado e o dia amanhecendo, esse mesmo senhor nos convidou para conhecer sua casa e tomar um café. Por ser uma proposta de uma pessoa para nós desconhecida, consultei todo o grupo e, depois de desmontar e arrumar todo o equipamento nos transportes, resolvemos aceitar aquele convite. A primeira surpresa que tivemos foi com um automóvel de luxo que ele dirigia. Durante o trajeto, alguns membros do conjunto foram juntos com ele, que dizia estar muito satisfeito conosco, com a festa, e em tom animado e de brincadeira, afirmava que sua casa estava disponível para tudo aquilo que quiséssemos, “menos mulher”, porque só tinha uma e essa era a dele.

 

Ele se dirigiu para Guaramiranga, no topo da serra. Ficamos sabendo de quem se tratava. Era o Dr. Sílvio Leal, médico de conceito muito elevado em Fortaleza, que todos os finais de semana se desligava de seus afazeres e procurava repouso e tranqüilidade naquelas paragens.

 

Ao chegar em seu sítio, encontramos uma verdadeira maravilha de paisagem, uma estrutura fantástica, tudo muito bem cuidado, jardins floridos, uma barragem artificial, e tudo sob um clima frio, agradável, com um pouco de neblina no horizonte. E o Dr. Sílvio Leal, com toda simplicidade, nos mostrou, detalhadamente, todas as dependências de sua morada de campo. A casa, em três níveis, construída em estilo colonial americano, possuía vários dormitórios, todos com móveis de madeira, funcionais e artisticamente trabalhados, um bar completo, salão de jogos, guarda-roupa com vestuário adequado para frio, uma despensa repleta de mantimentos e de produtos importados e até mesmo uma belíssima lareira. Fiquei realmente impressionado, pois só tinha visto casas daquele tipo em filmes. Depois de conhecermos tudo, ele nos levou para uma das varandas, onde nos sentamos para conversar. Tomamos um café, completo, ocasião em que ele nos pediu também para ficar para o almoço. Em seguida tocamos um pouco de violão e o Mardônio cantou algumas músicas. O Dr. Sílvio nos confessou que estava muito saudoso, em razão da viagem de sua esposa e de uma filha para o exterior, e que nossa presença o tinha deixado muito feliz.

 

Enquanto isso, um de seus moradores, bem defronte à casa, fez uma demonstração da quantidade de peixes que existia naquela barragem, jogando uma rede de pesca, que em poucos segundos voltou repleta de peixes. o Carló ficou tão entusiasmado que pôs um anzol na água, mesmo sem isca, e conseguiu fisgar um peixe... Nessa manhã, enquanto nosso grupo descansava um pouco e se divertia, resta dizer que o Fernando Galba nos chamava insistentemente para ir embora, pois segundo ele teria que fazer uma “corrida” com sua rural ainda naquele dia. Ao perceber esse fato, o Dr. Sílvio o chamou e muito discretamente lhe deu uma pequena gorjeta, de leve, para acalmá-lo... Depois dessa providência o Galba se transformou em um grande puxa-saco. Parou de reclamar, chegou-se para perto de nosso grupo e ficava nos ouvindo, prestando bastante atenção. Cada vez que o Dr. Sílvio começava a falar alguma coisa, ele entrava no meio de nós, batia palmas e dizia para todo mundo:

 

- Calma, calma, pessoal, deixem o doutor falar!

 

E outras frases similares, típicas de um “puxa-saco” militante.

 

Almoçamos muito cedo, mais ou menos às 10 horas, e logo em seguida retornamos para Fortaleza. Todos ficamos muito agradecidos pela recepção oferecida pelo Dr. Sílvio Leal, que nos proporcionou bons momentos em seu maravilhoso sítio, o qual ficou por nós conhecido como o “paraíso na terra”.

 

Posteriormente, fui chamado para tocar teclado em uma recepção em sua casa de Fortaleza, oportunidade em que recebi um excelente tratamento. Fiquei admirado com a suntuosidade de todos os ambientes, até mesmo com as torneiras dos lavabos, que douradas pareciam banhadas à ouro. Coisas finas, de gente que tem muita grana, sabe gastá-la e aproveitar bem a vida...

 

João Ribeiro da Silva Neto

Do livro "O Big Brasa e minha vida musical" (1999)



Exibir capĂ­tulos do livro sobre o Conjunto Big Brasa